Omagio a Eikoh Hosoe, de Cicchine

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O planejamento final

De cima, parecia uma criança brincando. Sentado de pernas cruzadas, um mapa do mundo multicolorido a sua frente e diversas canetinhas coloridas espalhadas em volta. Ele calmamente ia fazendo pontilhados vermelhos seguidos de pontinhos verdes em alguns lugares do mapa, então anotava o itinerário em um bloquinho de papel amarelado.          
 
Terminou as anotações e correu ao banco. Lá foi ele consultar todo o dinheiro que havia em sua poupança. E na conta corrente também, afinal, o mundo acabaria em breve.
 
Desanimou ao verificar preços de passagem em casa para os diversos itinerários escolhidos. Primeiro da cidade A, onde estava, até a B, da B pra C. É, com a grana que tinha chegaria facilmente até duas cidades vizinhas à frente.

- Queria ir para a África, gritou sozinho no apartamento.

Andou de um lado pro outro na pequena sala vazia do apartamento espalhando as canetinhas ainda mais e fazendo desenhos da sola de seu tênis no mapa. Abriu um vinho (caro já que podia se dar ao luxo agora). Pensava desesperadamente em um plano B para o fim do mundo. A ideia da viagem não tinha nem tempo hábil, nem dinheiro. E se o mundo não acabasse? Voltaria para casa e morreria de fome? Ou morreria de fome na cidadezinha perto de onde morava?

Agarrou o bloco de notas do chão e escreveu loucamente. Era um insight do que fazer no fim do mundo. Havia apenas três dias, anotou:
1)      Ainda hoje: comprar um skate e resolver meu problema de bullying infantil (na época em que isso nem existia) aprendendo a andar (como profissional);
2)      Vinho caro, o mais caro que existir a venda nessa cidade. Muito vinho e batata frita. Vários quilos de batata. Precisarei de vinho para amenizar a dor do skate. Nada de analgésico pra isso, já fui hipocondríaco a vida toda. Pra acompanhar o vinho, escreverei um livro inteiro em um dia. Não haverá tempo para publicar, mas as futuras gerações o encontrarão e serei um gênio bêbado no futuro;
3)      Quinta-feira já, melhor caprichar na programação já que o fim do mundo pode começar à meia noite. Usar a cueca mais bonita que tiver (aquela vermelha sexy que ganhei da minha ex-namorada deve servir) e correr pela rua gritando tudo o que pensa. Tudo! Tudo o que pensei a vida inteira. O mundo vai acabar, a sociedade futura saberá o que eu penso pelo livro. A atual precisa saber o que eu penso também. Comprar uísque, caso a coragem para executar a tarefa não apareça;
4)      Último e derradeiro dia. Ligar para todas as pessoas que eu amo/amei e pros que nunca amei nessa vida. Fazer declaração para o dono da padaria que tão amorosamente me vendeu pão de ontem a vida toda. Fazer declaração pro vizinho funkeiro. Fazer declaração para a menina de bigode que gostou de mim desde o colegial. Melhor, beijar a menina de bigode. Em público. Vender amor em uma barraquinha lindamente montada na frente de casa. Vendem-se declarações de amor, falsas ou não. Tanto faz, afinal. Essa merda toda vai acabar e todo mundo quer se sentir amado no grand finale! Farei declarações gratuitas para familiares e amigos, ainda pago uma cerveja na barraquinha (sim, vai ter cerveja também). Pros outros, vendo. Vai ser o maior sucesso.

ANOTAÇÃO FINAL E MAIS IMPORTANTE: ESPERO QUE ESSA MERDA NÃO ACABE, ASSIM TEREI DINHEIRO DA “BARRAQUINHA DA DECLARAÇÃO DE AMOR” E PODEREI VIAJAR O MUNDO.

Ensaio para o fim do mundo


Ensaiou para o fim do mundo na frente do espelho. Maquiagem, salto alto, saia rodada de festa. Interpretou uma personagem que não se desesperasse no derradeiro acontecimento. Ensaiou sem medo sua última atuação na peça chamada vida.
Para não ser surpreendida pelo caos que o evento supostamente trará, transformou sua vida particular num caos. Fechou o coração, brigou com o vizinho, não disse mais “bom dia” na rua, comeu todas as porcarias que evitou por anos, deixou o cartão de crédito no vermelho, xingou quem teve vontade, contou todas as verdades que havia guardado consigo, enterrou amores, cantou na rua sem medo.
Estava pronta para o final do mundo. Linda por fora e leve por dentro. Sentou-se e ficou a esperar o caos. Uma hora, duas horas, nada. O caos não veio pelo fim do mundo, mas ela já havia o instalado dentro de si. O mundo dos outros não acabou, mas o dela estava pra sempre acabado.

Publicado originalmente em: http://cicutababy.tumblr.com/ 

sábado, 1 de dezembro de 2012

Santa chuva


Chove e dentro de mim tudo é translúcido.
Gotas de água vindas do céu delicadamente
Misturam-se ao denso sangue das veias
E agora, sou aquosa e límpida.

Lá fora o céu abrilhanta-se em pedacinhos
Que como lágrimas choradas do mundo todo
Escorrem pelas diversas janelas
Sensibilizando os que ainda têm coração.

Os pássaros, em uma dança ensandecida,
Voam no céu cinza, sem medo da água.
Transformando o mundo num imenso quadro
Cujo pintor ainda está indeciso quanto à arte final.

Chove. E os sonhos agora lavados
Podem ser sonhados novamente por outrem.
Os donos iniciais dos sonhos têm então,
No cair das águas, a chance de novos sonhos.

A vida inteira renova-se com a chuva
Seguindo o exemplo das verdes folhas.
E estas, de tão alegres com as águas,
Dançam a dança outrora ensaiada com o vento.

Chove. E lá fora nada mais importa.
Porque o frio que gela o nariz é o mesmo
Capaz de aquecer um coração de pedra
De tanto encanto que a chuva tem.

Cada pingo carrega estórias e mais estórias
De nuvens distantes que agora choram
Por amor ou tristeza, por alegria ou por nada.
E estes podem ser sentidos pelos mais observadores.

A magia da chuva vai além da beleza,
Ela tem cheiro. E delicioso! E tato, e cor.
Mas o mais mágico na chuva é
O fato de ela limpar o coração da tristeza.